No Brasil e no mundo, os efeitos negativos da pandemia causada pelo Coronavírus vêm sendo sentidos pelos diversos setores da sociedade, tanto pela iniciativa privada quanto pelo poder público.

Uma das áreas afetadas pela crise do Coronavírus é a de contratações públicas e, especialmente, os contratos de concessão. Os impactos, ainda que não possíveis de serem totalmente contabilizados, afetam gravemente as concessionárias, em razão das medidas restritivas de circulação impostas, que implicam em diminuição de demanda, perda ou atraso de receita (inadimplência), atrasos na entrega de insumos, paralisação de obras, aumento do preço de bens e serviços, e problemas trabalhistas, dentre outros.

Neste cenário de prejuízos, debate-se acerca de quem deveria suportar os efeitos negativos da pandemia nos contratos públicos e se a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) poderia ser caracterizada como evento de força maior ou outra causa equivalente capaz de justificar o reequilíbrio de contratos de concessão (gerando direito à compensação) e os respectivos requisitos para que isso possa ocorrer.

À luz da teoria da imprevisão, a ocorrência de evento superveniente e extraordinário, de consequências imprevisíveis e inevitáveis que gere um desequilíbrio contratual, legitima o restabelecimento do equilíbrio contratual original.

Após a decretação da pandemia, a Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura consultou a Advocacia Geral da União (“AGU”) sobre a possibilidade de enquadramento dela como caso de força maior” ou “caso fortuito” nas concessões de transportes.

No Parecer n. 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU NUP: 50000.017282/2020-12, a AGU reconheceu a COVID-19 como fato extraordinário e imprevisível, que tem afetado às contratações e onerado excessivamente as concessionárias, capaz de autorizar o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de rodovias, portos e aeroportos para compensar perdas.

Seguindo o entendimento de que apenas eventos excepcionais justificariam a revisão de contratos com base na teoria da imprevisão, a AGU verifica se a pandemia da Covid-9 se enquadra nos três filtros: (i) ser evento superveniente e extraordinário; (ii) cuja ocorrência ou consequências sejam imprevisíveis e inevitáveis; e (iii) que tenha gerado um desequilíbrio muito grande no contrato, ou seja, uma onerosidade excessiva para uma das partes.”

E conclui de forma positiva: “O que importa, ao menos no âmbito desta consulta em tese, é reconhecer que o elemento causador do distúrbio econômico, ainda que indiretamente, consistiu claramente num evento da natureza (mutação e rápida disseminação de um vírus com taxa de letalidade relativamente alta), sendo que esse evento ou pelo menos os seus efeitos não poderiam ter sido previstos ou antecipados pelos concessionários quando da apresentação de suas propostas nos respectivos leilões e tampouco poderiam ter sido por eles evitados. Por conseguinte, parece-me muito claro que a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2 ) é evento que caracteriza “álea extraordinária”, capaz de justificar a aplicação da teoria da imprevisão.” 

Porém, considerando que a divisão de riscos estabelecida no contrato pode ser diferente da que decorre do modelo tradicional baseado na teoria das áleas, em que o contratado suporta todos os riscos ordinários e o poder concedente os riscos extraordinários, a AGU alerta que para decidir sobre qualquer pedido de recomposição de equilíbrio econômico-financeiro é imprescindível avaliar inicialmente a matriz de riscos do contrato. “Isso porque o devido cumprimento da distribuição de riscos prevista nos contratos de concessão é extremamente importante não apenas para desestimular condutas oportunistas, mas também para que os demais concessionários e eventuais interessados em assumir empreendimentos concessionados se sintam seguros em contratar com o poder público.” 

De fato, “nas concessões de serviços públicos, ao contrário dos contratos administrativos em geral, o risco do negócio é, de acordo com a doutrina clássica, exclusivo da concessionária, inclusive como preceitua a definição de concessão de serviços públicos do art. 2º, II, da Lei nº 8.987/1995 (“por sua conta e risco”), ressalvados os riscos imprevisíveis ou decorrentes de alterações unilaterais do contrato, em relação aos quais o particular está protegido pela garantia do equilíbrio econômico-financeiro. Todavia, dentro da evolução do que no tópico 12.10 chamamos de modelo clássico das concessões, muitos contratos de concessão vêm fazendo com que o poder concedente e usuários assumam parte da álea empresarial ordinária da concessão, o que nos afigura plausível face aos arts. 9º, § 2º, e 23, IV, da Lei nº 8.987/1995, que delegam aos contratos o estabelecimento de mecanismos de revisão tarifária para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro.” 

O documento afirma ainda que não há necessidade de tipificar exatamente qual argumento teórico poderia ser usado pelas concessionárias – força maior, caso fortuito ou fato do príncipe: “a menos que o contrato disponha de modo diferente, não há na prática maior relevância em tentar distinguir se eventual prejuízo sobre os contratos de concessão seria decorrente de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, pois em regra suas consequências jurídicas seriam as mesmas… O que importa […] é reconhecer que o elemento causador do distúrbio econômico, ainda que indiretamente, consistiu claramente num evento da natureza (mutação e rápida disseminação de um vírus com taxa de letalidade relativamente alta), sendo que esse evento ou pelo menos os seus efeitos não poderiam ter sido previstos ou antecipados pelos concessionários quando da apresentação de suas propostas nos respectivos leilões”. 

No entanto, o parecer pondera que essa aplicação não é automática e o poder concedente deve avaliar se a queda de demanda e as perdas financeiras das concessionárias são, de fato, associadas ao coronavírus:

“Porém, é importante ressalvar que esse reconhecimento em tese não significa necessariamente que os contratos de concessão deverão ser reequilibrados. Primeiro porque é possível que algum contrato tenha estabelecido uma alocação de riscos diferente da divisão tradicional entre riscos ordinários e extraordinários. Segundo, porque é necessário avaliar se a pandemia teve efetivo impacto sobre as receitas ou despesas do concessionário. É possível que, em determinados casos, não tenha ocorrido impacto significativo. Esses elementos deverão ser devidamente examinados para que se possa concluir se um determinado contrato deve ser reequilibrado.” 

Portanto, em se constatando, caso a caso, que os prejuízos decorrentes da pandemia não faziam parte dos riscos assumidos pela iniciativa privada, devem ser eles compensados, de acordo com o que dispuser o contrato (através da redução do valor devido de outorga, acréscimo nas tarifas cobradas ou extensão do contrato, por exemplo). Este entendimento ultrapassa o setor de transportes, sendo capaz de influenciar a apreciação de pleitos de reequilíbrio em todos os contratos de concessão.

Por Ana Parente