Em pouco mais de um ano e meio após o início da pandemia de Covid-19, as infecções pelo coronavírus continuam avançando e o mundo já soma mais de 200 milhões de registros da doença e cerca de 4,2 milhões de mortos. Ao mesmo tempo, outros reflexos da crise sanitária ganham destaque, como os impactos financeiros, o aumento da fome e da desigualdade social e as sequelas da doença. Nesse caminho, soma-se agora uma nova herança da Covid-19: a “pandemia oculta” de órfãos pelo mundo. Dados de uma pesquisa realizada em 21 países e publicada na revista The Lancet apontam que mais de 1,1 milhão de crianças e adolescentes perderam um dos pais ou dos cuidadores primários em decorrência da doença, considerando o período de 1º de março de 2020 e 30 de abril de 2021. Esse número é ainda mais expressivo quando considerados os responsáveis principais e secundários, ultrapassando 1,5 milhão de atingidos pela orfandade, nome atribuído aos indivíduos que perderam ao menos um dos pais ou cuidador principal. Além de quantificar o número de órfãos, a pesquisa também traz a taxa de mortalidade de cuidadores primários. No Peru, por exemplo, a cada mil menores de 18 anos, 10,2 perderam um dos responsáveis em decorrência do SARS-COV-2, enquanto no Brasil são 2,4 órfãos em cada mil crianças.

Embora o índice de mortalidade de pais brasileiros seja inferior ao de outros países, são ao menos 130.363 órfãos em decorrência da Covid-19. Entre esses casos está a história da família de Raquel Medeiros, que perdeu o esposo, Vinicius Braga Teixeira, há quatro meses, vítima do coronavírus. Mãe de dois meninos que recusam acompanhamento psicológico, ela se diz preocupada com a forma como os filhos Lucas Vinícius, 18 anos, e Bruno Levy, de 14 anos, estão enfrentando a perda paterna. Segundo ela, os garotos estão “encarando muito bem o luto”, o que acende um alerta. “Vejo que o luto que não é vivido no momento vai cobrar a conta mais para frente. Não sei se o meu filho pequeno bloqueou [o sentimento], porque ele passou por todo o trauma comigo, ele ouviu a ligação do hospital dizendo que o pai faleceu, ele viu meu sofrimento, o meu desespero. Não sei se é um tipo de bloqueio, porque ele não quer falar do luto, não sente necessidade. Meus filhos não querem falar do assunto, o mais velho chora às vezes, pouquíssimas vezes, porque está vendo que a realidade é essa: o pai não vai voltar para casa. A realidade mudou, vamos sentir falta dele para sempre”, relata Raquel, que fala aflita sobre as diferenças no enfrentamento à perda. “Eles não se abrem por vontade própria e eu sinto uma necessidade extrema de falar do meu luto, da minha dor, do meu marido”, completa.

Por causa da Covid-19, a nova realidade na casa de Raquel, com a orfandade paterna, se repete em outros lares. Além de mostrar os altos índices de órfãos pela pandemia no mundo, o estudo publicado na The Lancet também aponta que a taxa de crianças que tiveram pais falecidos é de duas a cinco vezes maior do que mães falecidas. Em números, isso significa, no Brasil, a morte de 25.608 mães e de 87.529 pais, uma realidade que atinge as famílias e reflete no comportamento e na vida de crianças e adolescentes. “Meu filho mais novo é mais parecido com o pai, então ele tá mais fechado, não toca no assunto, não fala. Hoje mesmo a psicóloga me chamou para conversar porque ele está muito ruim na escola, mas sempre foi um ótimo aluno. E o mais velho sente muita falta do pai, então ele tenta fazer tudo que o pai fazia”, conta Erika Santos, mãe de Weverton Júnior, de 22 anos, e Erick, 13 anos, e esposa de Weverton dos Santos, que faleceu vítima da Covid-19 em 30 de maio de 2020. Segundo ela, mesmo com a ausência, a figura paterna ainda é muito presente e importante para os filhos. “Tudo envolvia ele, tudo era sobre ele. Mesmo que as crianças não falem muito, eu sempre pergunto. Eles sentem falta, ficou para eles essa figura paterna.”