Todos os idiomas são organismos vivos e dinâmicos que sofreram adaptações com o passar do tempo. E é por meio de nossa língua materna que começamos a compreender o mundo e a nos comunicar com outras pessoas verbalmente ou por meio da escrita.

De acordo com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Portugal têm a “última flor do Lácio” como idioma oficial. Mas, por que Olavo Bilac, jornalista, poeta e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), descreveu o português dessa forma? A resposta é sua curiosa e singular origem.

As raízes de nossa língua materna
Assim como temos uma árvore genealógica, as línguas também as possuem. Nas raízes do nosso idioma está o latim, no seu robusto tronco está o indo-europeu, nos galhos estão as línguas românicas, enquanto na bela folhagem estão as neolatinas, que inclui o português. “Isso quer dizer que o português foi formado pelo latim e sofreu influências de outras línguas, como árabe, francês, inglês e espanhol. Só que o latim não foi o clássico usado pelas pessoas cultas de Roma, como poetas e magistrados, mas o latim chamado ‘popular’ ou ‘vulgar’, usado pela população de forma geral (soldados e camponeses). Ou seja, a língua portuguesa nasce de uma variação”, conta Mateus Gonçalves, professor de língua portuguesa.

Imagem de capa - Linguagem neutra: uma ofensa à  língua portuguesa

Esse latim vulgar era comumente falado na região de Lácio, na Itália – daqui vem a metáfora usada por Olavo Bilac. História vai, história vem e, com a conquista da Península Ibérica, por volta do século III, e a influência de outras línguas, esse latim evoluiu para o galego-português que, com o passar dos séculos, transformou-se no português, a língua oficial de Portugal. Com o uso corriqueiro e a estruturação, em 1536, Fernão de Oliveira criou a primeira gramática dessa língua. Curiosamente, esse é o mesmo período em que as grandes navegações portuguesas começaram a colonizar outros países, como o Brasil, desenvolvendo ramificações do idioma com as peculiaridades locais.

Atualmente, são mais de 280 milhões de pessoas em quatro continentes que usam a língua portuguesa diariamente, colocando nosso idioma entre os mais falados do mundo. Obviamente que há uma variação linguística tanto na sonoridade quanto na escrita entre um local e outro.

Silvana Goes, professora de língua portuguesa com mais de 30 anos de experiência, pontua que o português do Brasil difere do de outros países lusófonos por uma série de fatores: “dentre eles a influência das línguas indígenas e africanas, as quais enriqueceram o vocabulário brasileiro e trouxeram expressões únicas. A emissão vocal é outro aspecto peculiar, em que a entonação característica é conhecida como ‘sotaque brasileiro’. Outras diferenças notáveis estão na gramática e na sintaxe, cujas estruturas são mais simplificadas, se comparadas com o português europeu”.

Mateus esclarece que “nenhuma língua desconhece variação porque todas mudam e se ajustam, a depender da situação, do tempo, do local onde é utilizada e de quem a utiliza. Essa variação linguística é classificada em três tipos. A diatópica, que é aquela que se manifesta de região para região; a diastrática, em que a língua se manifesta a partir dos extratos sociais, ou seja, uma pessoa altamente letrada usa um determinado português, enquanto a pessoa não letrada usa outro tipo de português; e a diafásica, que se manifesta a depender da situação. Em uma entrevista de emprego, por exemplo, preciso e devo usar o chamado português ‘formal’, mas em uma roda de amigos usamos a chamada ‘linguagem informal’”.

A polêmica da neutralidade
No dinamismo da língua, deixamos o “vossa mercê”, ajustando-o para o “vosmecê” e hoje usamos o “você”, algo que aconteceu naturalmente para adaptar necessidades comunicativas. Uma mudança natural que continuou respeitando as normas gramaticais. Mas, nos últimos anos, temos visto um constante debate sobre “gênero neutro”, que defende o uso de expressões que anulem a diferenciação entre feminino e masculino. Em geral, isso ocorre por meio da substituição das vogais a e o por e, u, x ou pelo sinal @ em palavras e, principalmente, nos pronomes.

Silvana esclarece que “o gênero neutro, conforme as normas gramaticais tradicionais, engloba palavras e pronomes que não são precisamente masculinos ou femininos. Vocábulos como ‘todes’, ‘amigxs’ ou ‘elu’ estão em desacordo com a norma culta porque modificam a escrita, a forma de se referir às pessoas e sugerem a inclusão do gênero neutro, sendo recentemente consideradas adaptações linguísticas. A Academia Brasileira de Letras não vê razão para adoção oficial da linguagem neutra e considera inoportuno o momento para que tais palavras entrem oficialmente na língua portuguesa”.

Respeito é bom e todo mundo ganha
Toda manifestação deve ser respeitada, mas jamais imposta. Nossa língua é bela, rica em vocabulário e uma obra que merece ser reverenciada como é e ensinada da maneira correta.

Aliás, o uso de expressões que não respeitam a regra gramatical vigente pode ser prejudicial no processo de aprendizado. “Usar expressões que alteram a regra gramatical pode ser potencialmente confuso. Para crianças com transtorno do espectro autista (TEA), por exemplo, a consistência e a previsibilidade da linguagem são importantes para estabelecer a comunicação clara e efetiva. Deve-se considerar que uma comunicação inclusiva precisa ser acessível a todos os indivíduos”, explica Silvana.

E, quando se defende inclusão, é isso que deve ser levado em consideração. Afinal, uma pesquisa feita por cientistas da College London, no Reino Unido, em 2003, divulgou que 10% da população tem algum distúrbio ou transtorno de aprendizagem. Entre os mais comuns estão autismo, desordem de atenção, como transtorno de déficit de atenção (TDA) e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), discalculia e dislexia.

Silvana ainda enfatiza que a língua é um patrimônio cultural que une e conecta pessoas: “preservar a sua integridade garante a comunicação efetiva entre locutor e interlocutor. O português, além de ser falado por milhões de pessoas em diferentes países, tem uma história abundante, próspera e rica. Empregá-lo com precisão e respeito às normas gramaticais garante a clareza, a coesão e a preservação da identidade linguística e cultural. O uso ideológico da língua incentiva polarizações e conflitos desnecessários, o que não permite diálogos abertos e inclusivos”.

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Colaborador

Laís Klaiber / Fotos: REB Images/getty images / FatCamera/getty images