O relatório da Polícia Federal sobre os celulares do tenente-coronel Mauro Cid revela que o militar armazenou um arsenal teórico para justificar uma intervenção das Forças Armadas após a eleição do ano passado.
Mostra, além disso, que ele participou de conversas sobre um eventual golpe de Estado e que sua esposa, Gabriela, se envolveu na mobilização de manifestações em frente a quartéis.
O objetivo da ação golpista seria impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter na Presidência Jair Bolsonaro (PL), de quem Cid foi ajudante de ordens -espécie de secretário particular que acompanha a autoridade quase o tempo inteiro.
Em nota na sexta-feira (16), a defesa de Bolsonaro afirmou que os diálogos encontrados no celular de Cid reforçam que o ex-presidente não participou de articulações golpistas e que o telefone do ex-assessor era repositório das mais diversas lamentações.
Segundo a PF, a identificação desse dossiê ocorreu por acaso, após operação no começo de maio relacionada a suposta fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro. Na ocasião, Cid foi preso; ele e sua esposa tiveram os celulares apreendidos.
Desde então, agentes têm esmiuçado os aparelhos telefônicos. Embora a análise ainda esteja em curso, eles consideraram o conteúdo tão relevante que decidiram apresentar um relatório parcial.
*DOCUMENTOS EM DEFESA DE UM GOLPE DE ESTADO*
O que chamou a atenção dos investigadores foram fotografias de um texto cujo parágrafo final diz: “declaro o estado de sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”.
Segundo a PF, Cid enviou as imagens de um de seus celulares para o outro, para fazer um backup. Nesse processo, realizado em 28 de novembro de 2022, ele ocultou o autor do texto.
Com três páginas, o documento parece a minuta de um decreto de estado de sítio, iniciativa prevista na Constituição para situações de “comoção grave de repercussão nacional” e que permite ao presidente restringir o sigilo das comunicações, a liberdade de imprensa e o direito de reunião, entre outras medidas.
Como argumento, o texto traz uma interpretação heterodoxa do princípio da moralidade para defender que decisões alegadamente injustas do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) precisam ser remediadas de alguma forma.
A PF aponta outros documentos de conteúdo relacionado com esse: uma apresentação e um artigo associados à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e uma coletânea da Assembleia Constituinte.
Há, ainda, documentos relacionados ao advogado Ives Gandra Martins: uma análise de suas ideias, uma entrevista escrita e alguns vídeos (nos dois últimos casos, exposições teóricas anteriores à eleição ou mesmo ao governo Bolsonaro).
Todo esse material trata da atuação dos militares na garantia da lei e da ordem ou na garantia dos Poderes constitucionais. O conjunto sugere um esforço para fundamentar a ação das Forças Armadas como poder moderador de eventual conflito do Judiciário com o Executivo ou com o Legislativo -interpretação também heterodoxa.
*DIÁLOGOS ENCONTRADOS NOS CELULARES*
Em outra frente, a PF destaca diálogos explícitos sobre um golpe ou sobre manifestações de apoio aos militares.
Num deles, travado em novembro e dezembro, o coronel Jean Lawand Junior pede diversas vezes para Cid convencer Bolsonaro a ordenar a intervenção das Forças Armadas. A certa altura, Cid se diz na luta.
Há, ainda, um grupo de WhatsApp chamado “Dosssss!!!”, composto por oficiais superiores da ativa que oscilam entre a resignação e pedidos de intervenção para impedir a posse de Lula.
No celular de Gabriela, esposa de Mauro Cid, a PF identificou conversas com Ticiana Villas Bôas, filha de Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército. As duas falam sobre a logística e a convocação de protestos promovidos por apoiadores de Bolsonaro.
Outro celular examinado é o do sargento Luis Marcos dos Reis, também ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que foi preso na operação sobre suposta fraude no cartão de vacinação.
Num diálogo com Reis, Cid manifesta apoio a manifestantes acampados em frente a um batalhão em Goiânia, que o próprio Cid quase assumiu neste ano.
Dos Reis também interage com outros interlocutores, aos quais manda diversas imagens do ataque golpista em Brasília, deixando claro que ele próprio participou do 8 de janeiro.