Muito já se falou sobre a timidez de Cássia Eller, morta em 2001, aos 39 anos. Mas nada que foi escrito até hoje sobre isso talvez seja tão impressionante quanto uma declaração dela, em que praticamente se revela uma fóbica social: “Eu tenho medo das pessoas, medo de gente. A música foi uma fuga da minha incapacidade de viver socialmente com as pessoas”, diz a cantora em um trecho do documentário Cássia Eller, que estreia hoje em circuito nacional.
Dirigido pelo carioca Paulo Henrique Fontenelle, 44 anos, o mesmo diretor de Loki – Arnaldo Baptista (2008) e Dossiê Jango (2013), o longa-metragem dispõe de farto material de arquivo que mostra imagens e depoimentos antigos da artista carioca, além das impressões da crítica especializada na época em que Cássia iniciou carreira, em Brasília.
Polêmicas
A viúva da cantora, Maria Eugênia, deu apoio irrestrito à execução do filme. Esse apoio, no entanto, em hipótese alguma, transformou a cinebiografia em um produto ‘chapa branca’, insosso. Ao contrário, Maria Eugênia não censurou nada e até fez questão que Fontenelle abordasse temas polêmicos, como as drogas, a confusa vida amorosa de Cássia e a homossexualidade.
Além de Maria Eugênia, Chicão, filho de Cássia, também aparece no filme, em depoimento atual. Também dão entrevistas artistas que tiveram uma ligação essencial com a cantora, como Zélia Duncan, sua amiga desde os tempos de Brasília, e Nando Reis, autor de alguns dos maiores sucessos de Cássia e que codirigiu o Acústico MTV, álbum que transformou a cantora num fenômeno.
Para realizar o filme, que venceu o prêmio do público de melhor documentário na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Paulo Henrique realizou mais de 40 entrevistas e levou mais de quatro anos pesquisando. “Visitamos arquivos de TVs, jornais e conversamos muito com pessoas que conviveram com ela, desde a juventude. E sempre aparecia algo novo. Até um vizinho do meu prédio cedeu uma fita em VHS com imagens de um show dela”, diz Paulo Henrique.
Esse trecho é mais um em que fica evidente a pouca aptidão que Cássia tinha para lidar com a imprensa e os fãs. No meio de um show, três ou quatro mulheres sobem no palco para agarrar a cantora e alguns seguranças tentam impedir. Cássia está claramente deslocada, sem saber o que fazer.
Saudades
Mas, mesmo muito tímida e até com “medo” das pessoas, ela jamais foi arredia. Ao contrário, era muitíssimo querida, como se percebe nos depoimentos. Nando Reis, um dos mais próximos dela, tem os olhos marejados ao falar da saudade que sente da amiga: “A voz dela, o jeito como a gente se cumprimentava, a risada dela… A maior lembrança é isso, quando a gente se encontrava pra gravar. Ali, resumia tudo”.
O cantor Oswaldo Montenegro, que dirigiu Cássia Eller em cursos de teatro, fala sobre a força dela no palco: “Ela tinha uma carga dramática quando cantava que era recheada de ironia, de um temperamento que tinha muita emoção, mas também não se levava tanto a sério assim. Mas se você pegasse o olhar dela, ela tava dizendo: ‘como somos todos pequenos, como somos todos um sopro’”.
Unanimanente, os amigos (e também o diretor) destacam a contradição entre aquela Cássia tímida e o furacão que passava pelo palco com a sua presença. “Eu tinha a sensação que ela recebia um santo mesmo, era uma coisa doida aquilo ali! Ela se transformava no palco, não era a mesma pessoa”, diz Maria Eugênia.
A viúva da cantora, que viveu com ela por 14 anos, protagonizou uma disputa na Justiça pela guarda de Chicão, o filho de Cássia. De um lado, sozinho, estava o pai da cantora, que pouco convivia com o neto. Do lado oposto estavam todos os outros, inclusive a mãe de Cássia, que desejava que o neto ficasse com Maria Eugênia.
A sentença foi favorável à viúva e a alegria dela está retrada no filme, quando ela sai do tribunal comemorando a decisão do juiz. Chicão, que aparece numa imagem atual, aos 22 anos, fala sobre a mãe no filme. Ele aparece revirando umas fotos antigas de Cássia e lembra de quando jogava bola com ela ou andava de skate.
Gravidez
Paulo Henrique Fontenelle diz que pensou em vários formatos para o filme e um deles teria Chicão como protagonista, investigando a história da mãe. Mas a ideia foi abortada, afinal o garoto é tímido como a mãe. E herdou dela, apesar do pouco convívio, até alguns trejeitos.
Isso fica nítido no depoimento dele, em que mexe nas próprias mãos enquanto fala, sentindo-se claramente desconfortável, e pede uma pausa nas filmagens: “Pô, posso pedir ‘autos’? É complicado fazer mais de uma frase”, diz, para risada geral da equipe de filmagem.
O filme mostra em diversos momentos a felicidade de Cássia quando estava grávida e o quanto a maternidade mudou a vida pessoal e profissional dela. Ficou famosa a crítica que Chicão, ainda com 6 anos de idade, fez ao jeito da mãe cantar: “Quem canta é Marisa Monte, você berra”, disse o menino, com a sinceridade que só as crianças possuem. No filme, em um antigo depoimento, Cássia assume que depois do puxão de orelha do filho decidiu usar a voz de maneira mais suave e passou a se espelhar em Nando Reis.
Imprensa
Outro assunto que Paulo Henrique fez questão de abordar no filme foi a repercussão da morte de Cássia Eller na imprensa e a maneira como o assunto foi tratado pela mídia na época. “No mesmo dia da morte, as TVs já falavam em overdose e no dia seguinte os jornais especularam o mesmo. E até hoje muita gente acredita nessa versão da overdose. E muitos veículos foram cruéis e irresponsáveis. Sei que o papel da imprensa é cobrir, mas precisamos lembrar que havia uma família envolvida”, critica o diretor, que teve acesso a laudos apontando um infarto como a causa da morte.
No filme, Maria Eugênia é enfática à cobertura e não econiomiza críticas a diversos veículos: “Quando eu cheguei com Chicão no Rio , havia outdors enormes com a foto de Cássia e escrito: ‘Drogas – mais uma vítima’. Isso é uma inconsequência. Como afirmam isso com tanta veemência? Pro Francisco, foi difícil e pra mim foi pior ainda”.
Ana Butler, diretora da MTV na época em que Cássia Eller gravou o Acústico, acredita que o sucesso do álbum, que alçou a cantora à categoria de popstar nacional, pode ter alguma relação com a morte da cantora: “Foi virando aquele absurdo de sucesso. Tomou um rumo que ninguém esperava e aí eu já não sei mais o quanto é bom, se é bom ou ruim… ela teve dificuldade em lidar com o sucesso. Eugênia também diz que o mais difícil para ela foi a questão de ser amada demais”.
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