Na hora de comprar remédio, você já deve ter ouvido o simpático pedido do outro lado do balcão: “Me fala o CPF para ver se você tem desconto”. Existe boa chance de você ser seduzido pela palavra mágica: desconto. Mas, se você é dessas pessoas que não se sente confortável em passar dados a qualquer um, pode ter sido surpreendido com a expressão incrédula dos farmacêuticos. “Como assim você não quer desconto?”, indagam, em tom de condenação.
De fato, recusar pechincha não parece ser algo que a maioria de nós faria. Mas por que, em toda compra nas grandes drogarias, querem tanto assim o número dos nossos CPFs? O que está por trás dessa insistência para que forneçamos nossos cadastros de pessoa física?
“Existe uma verdadeira obsessão das farmácias em dar desconto. E no capitalismo, não existe obsessão de graça. Há um interesse por trás.”
Uma primeira resposta para essa pergunta é a cota de registros que os atendentes devem adicionar ao sistema. Cada funcionário precisa atingir uma meta de 100 novos cadastros no sistema por mês.
A pergunta que não é respondida de barriga no balcão é qual é este sistema que está sendo alimentado com nossos dados e para o que estão sendo usados. A dúvida permanece em quem estuda os direitos do consumidor. Trata-se de algo obscuro, perigoso e abusivo.
A interpretação que é que realmente existe um processo de captura, que é uma prática abusiva, ao exigir o CPF para verificar se há desconto. Segundo o Código de Defesa do Consumidor, os descontos devem ser vinculados a um determinado produto, e não à entrega do CPF .
“Imagine que você comprou no seu CPF um remédio para sua avó que está sofrendo de câncer. Se esse histórico sai da farmácia e é compartilhado para outros setores, numa análise, o plano de saúde pode acreditar que você está fazendo um tratamento e não avisou. Daí aumentam o valor do contrato e você nem fica sabendo.”
O grande problema é que todo mundo têm os seus dados, menos você. E quem têm que ter os seus dados é você. O valor que dados pessoais têm para formulação de campanhas publicitárias é conhecido há bastante tempo; nos últimos anos, a captação dessas informações foi usada tanto para obter mais lucro quanto para influenciar o debate público e a política. O problema mais grave da prática é a falta de conhecimento sobre como são tratados e armazenados e, acima disso, por onde circulam.
Neste sábado, 16, o editor do Jornal do Radialista foi até a uma loja da rede Drogasil em Ilhéus comprar um determinado medicamento, e a funcionária de pronto perguntou: “Quer um desconto? me passe seu CPF. Sem o seu CPF não tem desconto”. O editor não aceitou a exigência. Buscou outra farmácia e encontrou o mesmo medicamento bem mais barato, sem a manobra duvidosa do CPF.
Na ausência de legislação específica para dados pessoais, as informações coletadas nas farmácias são regulamentadas por dois textos. O primeiro é a lei 13021/2014 que descreve como uma das atividades do farmacêutico a de “estabelecer o perfil farmacoterapêutico no acompanhamento sistemático do paciente, mediante elaboração, preenchimento e interpretação de fichas farmacoterapêuticas“.
O segundo é uma normativa da Anvisa publicada em 2009 que trata da responsabilidade do farmacêutico em assegurar a privacidade do usuário e o proíbe de fazer outro uso dos dados que não seja para a melhor prestação do serviço. O texto ainda destaca que “os dados dos usuários não podem ser utilizados para qualquer forma de promoção, publicidade, propaganda”. Apesar da existência dessas poucas regras, não existe uma fiscalização efetiva, e não se trata de uma pauta nacional.
O fato do Brasil não ter lei de proteção de dados pessoais é mais um elemento complicador dessa equação. A coleta de dados feita nas farmácias não possui praticamente nenhuma proteção legal. O Marco Civil cobre algumas regras básicas de proteção de dados pessoais para quem está na camada de aplicações de internet, mas o mundo offline está completamente desprotegido.
A lei nacional de proteção de dados é uma demanda antiga de movimentos de direitos digitais. Diversos desses grupos se juntaram em 2016 na Coalizão Direitos na Rede para incluir essa pauta no debate público e hoje trabalham com a campanha Seus Dados São Você. A discussão em torno de proteção mais efetiva de dados pessoais está em pauta desde 2010, quando se iniciaram os debates em torno do que viria a se tornar o projeto de lei 5276/2016, hoje em tramitação na Câmara dos Deputados.
“REUQUINOL e tantos outros medicamentos, nas redes Drogasil, bem acima do preço de mercado. Somente com o CPF você consegue algum desconto”, afirma o editor do Jornal do Radialista, que na próxima terça-feira estará apresentando denúncia escrita ao MP, em Ilhéus.
Seria importante ter essa proteção o quanto antes, comentou Lucas Teixeira, membro da direção de tecnologia da Coding Rights. Para ele, a falta de transparência na coleta de dados nas farmácias é crítica, já que dados relacionados a questões de saúde são considerados extremamente sensíveis, ao mesmo tempo que o CPF é um forte identificador. Uma vez que você coleta o CPF da pessoa, você consegue não apenas associar o histórico de compras das pessoas, mas também comprar dados diversos sobre outros fatos da vida delas.
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