1. INTRODUÇÃO

O art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabelece que os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, que estivessem “em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público”.

A “forma regulada no art. 37” é, como se sabe, a admissão por meio de concurso público, conforme dispõe o respectivo inciso II, o qual ressalva dessa regra “as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

Apesar da ausência de submissão a concurso público, a esses trabalhadores estendeu-se, pelo texto constitucional de 1988, o direito à estabilidade no serviço público, típico de servidores públicos concursados. E, em razão dessa ampliação, adotada pela própria Constituição, doutrina e parte da jurisprudência firmaram-se no sentido de que a terminação do vínculo desses trabalhadores com o Estado, em caso de iniciativa patronal, somente poderia ser efetivada se houvesse o ajuizamento de demanda específica na Justiça do Trabalho, denominada pela Consolidação das Leis do Trabalho de inquérito para a apuração de falta grave, disciplinada pelos arts. 853 a 855 da CLT.

Este estudo pretende demonstrar que essa formulação é equivocada. Para a demonstração dessa tese, é necessário abordar a disciplina jurídica do instituto da estabilidade na Constituição, a estabilidade decenal prevista na CLT, a configuração da relação de trabalho entre o trabalhador apontado no art. 19 do ADCT e o Estado, além da normatização respeitante ao inquérito para a apuração de falta grave. É o que se passa a fazer a partir de agora.

2. OS TRABALHADORES NÃO CONCURSADOS NAS ORDENS CONSTITUCIONAIS ANTERIORES

A análise das regras relacionadas aos servidores públicos ao longo dos anos permite verificar que sempre foi comum o péssimo hábito dos gestores públicos de lidarem com o serviço público de forma a atender seus interesses pessoais, por razões, no mínimo, reprováveis.

A exigência constitucional mais efetiva para garantir o mínimo de profissionalização das carreiras estatais é, sem dúvida, o concurso público, que somente veio a ser consagrado constitucionalmente pelo texto de 1934 (art. 169). Essa exigência, contudo, somente era aplicável à “primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas” (art. 170 § 2º). A bipartição entre “cargos” e “empregos” na Administração Pública somente foi implementada na Constituição de 1946: o “cargo” seria ocupado por “funcionário público” enquanto o “emprego” seria expressão destinada a entidade autárquica, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público (art. 181 § 3º e art. 209, Parágrafo Único, IV). Somente se exigia concurso público para investidura em “cargo de carreira e em outros que a lei determinar” (art. 186).

Daí em diante, até a Constituição de 1988, a contratação de pessoal para o Estado sempre prescindiu de concurso público, ressalvados apenas os casos de servidores efetivos estatutários, que eram a minoria do quadro funcional, exatamente porque o concurso representava um “engessamento burocrático” na dinâmica da mão-de-obra estatal (leia-se: o concurso e a estabilização do servidor reduziam a margem de livre seleção e dispensa dos trabalhadores, que, assim, eram massa de manobra fluida, atrelada aos resultados das eleições, quando estas existiam, ou à vontade da pessoa do administrador que houvesse sido indicado por alguém).

O aspecto fundamental que justificou a popularização do regime celetista na Administração Pública, especialmente a partir da década de 1970, foi a brecha constitucional aberta pelo art. 97 § 1º da Constituição de 1967, com redação atribuída pela Emenda Constitucional n. 1/69 (“a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei”). Propagou-se o entendimento de que o texto constitucional permitiria a livre contratação de trabalhadores sem concurso público, desde que não ocupassem “cargo público” e que não estivessem sendo investidos pela primeira vez nesse posto. Disseminou-se, assim, a lógica de que, segundo a Constituição, o concurso público seria a exceção e a contratação livre seria a regra, bastando que não se tratasse de “primeira investidura em cargo público”, entendimento que encontrou ressonância na permissiva interpretação do STF em relação a esse dispositivo constitucional, como se percebe pelos julgados abaixo transcritos

Recurso Extraordinário. Inadmissibilidade. Vínculo empregatício. Concurso público. Não exigência pela Constituição anterior. Alegação de ofensa ao art. 37, II, § 2º. Não conhecimento. Agravo regimental não provido. Precedente. Sob a égide da Constituição anterior não era exigível aprovação em concurso público para provimento em emprego público (BRASIL, 2005).

A suposta contrariedade ao art. 97, § 1º, da Carta de 1969, sobre ser estranha tanto ao acórdão recorrido, como ao RE e ao próprio recurso de revista – o que torna aplicáveis, de um lado, a Súmula 282 e, de outro, a jurisprudência do STF que não admite a inovação de fundamento em sede de agravo regimental –, tem assento em premissa de todo equivocada, uma vez que o processo seletivo do art. 6º, da Lei 7.231/84, não visava ao preenchimento de cargo público, em sim de emprego público disciplinado pela legislação trabalhista e do FGTS. De maneira que, como quer que se entenda a ressalva contida na parte final do § 1º do mencionado art. 97 da Carta de 1969, não há como identificar na Lei 7.231/84 a legislação ali referida (BRASIL, 2000).

O mecanismo que respaldaria essa “contratação livre” seria a admissão de trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Sendo assim, considerando-se que para os “empregos” estatais não havia determinação constitucional para o recrutamento de pessoal pelo concurso público, a CLT tornou-se a norma-padrão de regência da vinculação entre Estado e trabalhador. Apesar de a CLT dispor expressamente que suas normas não se aplicavam aos funcionários públicos [01] – o art. 7º exclui a aplicabilidade da Consolidação aos funcionários estatais e também aos extranumerários [02] –, essa norma foi subvertida, graças à possibilidade, aberta pela própria CLT, de que norma em sentido contrário poderia disciplinar essa restrição de maneira a neutralizá-la [03]. Assim, a utilização da CLT como regramento normativo dos trabalhadores estatais também se transformou em regra, estando o estatuto dos funcionários públicos (que, na União, era a Lei n. 1.711/52) relegado ao papel de “exceção”, tal como aconteceu com o concurso público.

Ficou claro, assim, o intuito de permitir o loteamento de ocupações estatais tomadas por indicações político-partidárias, o que prejudicou sobremaneira a profissionalização das carreiras estatais no Brasil.

3. A DISCIPLINA DA LEI N. 6.185, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1974

A manipulação das diretrizes constitucionais e celetistas ganhou ainda mais vulto com a edição de normas que se mostravam cada vez mais voltadas para a vinculação trabalhista e para a “livre” contratação e dispensa de trabalhadores e cada vez menos preocupadas com o concurso público. Não por acaso esse era o teor dos três primeiros dispositivos da Lei n. 6.185/74:

Art. 1º. Os servidores públicos civis da Administração Federal direta e autárquica reger-se-ão por disposições estatutárias ou pela legislação trabalhista em vigor.

Art. 2º. Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem correspondência no setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procurador da Fazenda Nacional, Controle Interno, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos e obrigações sejam os definidos em Estatuto próprio, na forma do art. 109 da Constituição Federal (Redação dada pela Lei n. 6.856, de 1980).

Art. 3º. Para as atividades não compreendidas no artigo precedente só se admitirão servidores regidos pela legislação trabalhista, sem os direitos de greve e sindicalização, aplicando-se-lhes as normas que disciplinam o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

Parágrafo único. Os servidores a que se refere este artigo serão admitidos para cargos integrantes do Plano de Classificação, com a correspondente remuneração.

Em face dessas normas, é possível deduzir a dinâmica pretendida pelos gestores públicos da época: somente nas atividades ditas “inerentes ao Estado”, sem correspondência no setor privado, é que seria necessário o provimento de cargo público (art. 2º da lei), o que implica afirmar que, a teor do disposto no art. 97 § 1º da Constituição de 1967, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional n. 1/69, esses carreiras deveriam ser providas por servidores concursados. Essa circunstância, no entanto, nem sempre realmente ocorria, já que o mesmo art. 97 § 1º da Constituição de 1967 (com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional n. 1/69) dispunha que “a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei“. Bastava, portanto, que o “estatuto próprio” dos servidores das carreiras mencionadas no art. 2º da Lei n. 6.185/74 dispensasse-os da exigência de concurso público, que então se teria servidores exercendo atribuições “inerentes ao Estado”, compulsoriamente vinculados ao regime estatutário (e afastados, pois, da vinculação trabalhista), mas possivelmente não concursados, um verdadeiro contrassenso.

De acordo com o já transcrito art. 3º da Lei n. 6.185/74, para as atividades não inerentes ao Estado “só se admitirão servidores regidos pela legislação trabalhista, sem os direitos de greve e sindicalização, aplicando-se-lhes as normas que disciplinam o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço”.

Esse dispositivo legal, circunscrito, como todo o texto dessa lei, ao âmbito da Administração Federal [04], não mais subsiste, seja porque a Constituição impede a pluralidade de regimes funcionais (redação original do caput do art. 39 revigorada por decisão do STF na ação direta de inconstitucionalidade n. 2135-MC/DF), seja porque os direitos de greve e de sindicalização atualmente estão assegurados tanto aos trabalhadores da iniciativa privada (arts. 8º e 9º da Constituição) quanto aos servidores públicos (art. 37, incisos VI e VII, do texto constitucional). Infraconstitucionalmente, a Lei n. 8.112/90 impõe a adoção de um regramento uniforme aos servidores públicos federais, sem distingui-los quanto às atividades exercidas, restando, pois, revogado tacitamente o art. 3º da Lei n. 6.185/74.

Mesmo com a revogação desse dispositivo, remanesce o interesse em abordar o seu alcance, haja vista a projeção que sua interpretação veio – indevidamente – a atingir. A origem do problema divide-se em duas frentes: numa primeira via, vislumbra-se a ideia da livre dispensa do trabalhador estatal regido pela legislação trabalhista e, numa segunda via, discute-se a modalidade de acesso do trabalhador ao emprego estatal. Nenhuma dessas duas interpretações criadas a partir desse dispositivo deve persistir, no entanto, pelas razões expostas a seguir.

O art. 3º da Lei n. 6.185/74 dispõe, na parte final do seu texto, que aos empregados estatais seriam aplicadas “as normas que disciplinam o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço”. Aparentemente o texto apresenta uma obviedade constrangedora, pois é evidente que o trabalhador regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, independentemente quem seja o seu empregador, será beneficiário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), haja vista a existência de norma constitucional expressa nesse sentido (art. 7º, III, da Constituição de 1988). Essa realidade, contudo, não era a mesma que existia à época da edição da lei.

A Constituição de 1967 assegurava aos trabalhadores, no art. 158, XIII, o direito à “estabilidade, com indenização ao trabalhador despedido ou fundo de garantia equivalente”. Esse dispositivo foi renumerado pela Emenda Constitucional n. 1/69 – passou a ser o art. 165, XIII. Percebe-se que o texto constitucional, ao utilizar o disjuntivo “ou”, firmou a premissa de que estabilidade fundo de garantia eram benefícios alternativos ao trabalhador, nunca cumulativos. Cristaliza-se, portanto, a interpretação de que ou o trabalhador seria beneficiado com a estabilidadeou teria direito ao fundo de garantia (do tempo de serviço).

caput do art. 158 da Carta de 1967 (mantido e renumerado, pela Emenda Constitucional n. 1/69, passando a ser o caput do art. 165), no entanto, estipulava que os direitos relacionados nos incisos não prejudicavam a concessão de outros direitos que visassem à melhoria da condição social dos trabalhadores, consagrando, assim, o princípio da proibição do retrocesso na ordem constitucional então vigente [05]. Essa norma foi reiterada no caput do art. 7º da atual Constituição, praticamente sem alterações [06], e é fundamental para que se aponte a primeira impropriedade dessa interpretação: é certo que a Constituição estabeleceu a alternatividade entre estabilidade e fundo de garantia, mas não impediu que outros direitos fossem incrementados ao patrimônio jurídico do trabalhador, visto que a melhoria da condição social do empregado foi, e ainda é, um princípio constitucional expresso. É, portanto, possível asseverar que nada impediria que o trabalhador fosse beneficiado concomitantemente com a estabilidade e o fundo de garantia do tempo de serviço, pois essa providência, longe de agredir o texto constitucional, significaria a implementação efetiva de uma de suas mais relevantes normas – a melhoria da condição social do trabalhador.

No direito positivado infraconstitucional tinha-se, contudo, a alternatividade entre a estabilidade, prevista no art. 492 da Consolidação das Leis do Trabalho, segundo o qual “o empregado que contar mais de 10 (dez) anos de serviço na mesma empresa não poderá ser despedido senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas” e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), implementado pela então vigente Lei n. 5.107/66 [07]. Ocorre que essa alternatividade referia-se à estabilidade decenal prevista no art. 492 da CLT, e não à estabilidade constitucional assegurada aos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos (art. 188 da Constituição de 1946; art. 99 da Carta de 1967; e art. 100 dessa mesma Carta, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional n. 1/69).

Assim, o art. 3º da Lei n. 6.185/74, ao dispor que os empregados estatais seriam abrangidos pelas “normas que disciplinam o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço” pretendeu, na verdade, extirpar qualquer dúvida a respeito da possível estabilização (fundada no art. 492 da CLT e não na Constituição, frise-se) desses trabalhadores no serviço público: se vigorava constitucionalmente a alternatividade entre estabilidade decenal e FGTS, e se a opção política adotada foi a de impedir que o trabalhador, admitido para prestar serviço ao Estado, fosse estabilizado no serviço público, conclui-se que o teor do art. 3º da Lei n. 6.185/74 não significou a exclusão dos empregados estatais da prerrogativa constitucional da estabilidade funcional, mas sim impediu que os empregados pudessem optar pelo benefício da estabilidade decenal estipulado pelo art. 492 da CLT. Com essa providência, todos os trabalhadores alcançados pelo art. 3º da Lei n. 6.185/74 foram tidos como “optantes” do FGTS, embora, obviamente, não houvesse opção: as normas da Lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (Lei n. 5.107/66) abrangiam esses trabalhadores de maneira compulsória.

Mesmo que o art. 3º da Lei n. 6.185/74 pretendesse também alcançar a estabilidade constitucional, para excluí-la a contrario sensu com a imposição do FGTS, a norma seria inócua: pelos arts. 100 e 109, III, da Constituição de 1967, com a redação que lhes foi conferida pela Emenda Constitucional n. 1/69, a estabilidade somente alcançaria o funcionário público concursado, nos termos da lei, a qual, à época, somente conferia estabilidade ao funcionário ocupante de cargo efetivo (art. 82 da Lei n. 1.711/52). Tanto o concurso quanto a efetivação eram realidades distantes dos trabalhadores estatais regidos pela legislação trabalhista. Vê-se, pois, que o art. 3º da Lei n. 6.185/74 não necessitaria excluir os empregados da estabilização constitucional no serviço público, pois essa restrição já decorria da ordem constitucional e infraconstitucional então vigente. E caso se adotasse a solução contrária – ou seja, estabilizar no serviço público os empregados estatais – haveria nítida inconstitucionalidade.

Constata-se, pois, que a norma do art. 3º da Lei n. 6.185/74, equiparando esses empregados estatais a “trabalhadores privados”, retirava desses indivíduos qualquer garantia de emprego: o art. 3º da Lei n. 6.185/74, que “impunha a opção”(!) pelo FGTS como direito inafastável desse trabalhador, impedia qualquer possibilidade de aquisição da estabilidade decenal prevista do art. 492 da CLT, exatamente pela “alternatividade” entre estabilidade e fundo de garantia prevista na ordem constitucional então vigente (art. 158, XIII, na Carta de 1967, e art. 165, XIII, depois da Emenda Constitucional n. 1/69). A isso deveria ser acrescido o fato de que a Constituição então vigente somente reservava a estabilidade no serviço público ao servidor ocupante de cargo efetivo, o que alijaria o empregado estatal tanto da estabilidade decenal quanto da constitucional.

4. A ESTABILIDADE PREVISTA NO ART. 41 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Como já se viu, o art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) dispõe que os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, que estivessem “em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público”. Cabe, aqui, indagar: qual a extensão do conceito de estabilidade utilizado por esse dispositivo constitucional?

No tópico anterior, foi firmado o entendimento segundo o qual nenhuma das estabilidades possíveis – decenal ou constitucional – foi estendida ao celetista contratado pelo Estado. A Constituição atual universalizou o FGTS (art. 7º, III), sem qualquer “alternatividade” nem menção à estabilidade decenal, de modo que, a esse respeito, a possibilidade de aquisição de estabilidade decenal não foi sequer tangenciada pelo texto constitucional de 1988.

A Constituição vigente previu, contudo, a estabilidade constitucional aos servidores públicos no seu art. 41, o qual apresentava, em sua redação original, o seguinte teor:

Art. 41. São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em virtude de concurso público.

§ 1º. O servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa.

§ 2º. Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade.

§ 3º. Extinto o cargo ou declarada sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade remunerada, até seu adequado aproveitamento em outro cargo.

Percebe-se não haver nesse dispositivo nenhuma referência à estabilidade decenal prevista no art. 492 da CLT (“o empregado que contar mais de dez anos de serviço na mesma empresa não poderá ser despedido senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas”). Assim sendo, facilmente se conclui que, ao ignorar a estabilidade decenal prevista na CLT, o conceito de estabilidade utilizado pela Constituição de 1988 (ou melhor, de “estáveis no serviço público”) deve ser, no caso dos trabalhadores apontados no art. 19 do ADCT, o mesmo adotado pelo seu art. 41. Essa é a única modalidade de estabilidade funcional prevista pela Constituição; e ela não se confunde com a estabilidade decenal prevista no art. 492 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Esse panorama não foi modificado pela Emenda Constitucional n. 19/98, que alterou o art. 41 da Constituição – as conclusões até então expostas podem ser reafirmadas diante do atual texto desse dispositivo. Veja-se o seu teor após a modificação promovida por essa Emenda:

Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

§ 1º. O servidor público estável só perderá o cargo:

I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado;

II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;

III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.

§ 2º. Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.

§ 3º. Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo.

§ 4º. Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.

As modificações introduzidas pela Emenda n. 19/98 no regime jurídico da estabilidade constitucional mantêm incólumes as considerações feitas até o momento quanto ao regramento constitucional dos trabalhadores indicados no art. 19 do ADCT: a extensão do prazo para a aquisição da estabilidade (de dois para três anos) em nada afeta a situação desses trabalhadores, pois, afinal, eles detêm a estabilidade desde a promulgação da Constituição de 1988; e a avaliação periódica de desempenho, que seria mais uma hipótese de mitigação da estabilidade, é, até o momento, inaplicável, haja vista a inexistência da lei complementar exigida pelo art. 41, § 1º, III, da Constituição.

Esses servidores, no entanto, embora tivessem sido agraciados com a prerrogativa da estabilidade, mesmo sem se submeterem a concurso, não são considerados efetivos, porque a própria Constituição estipula que “o tempo de serviço dos servidores referidos neste artigo será contado como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação, na forma da lei” (art. 19 § 1º do ADCT – destaques não constam no texto original).

Embora pareça ser uma situação inusitada – estabilidade sem efetivação – esse contrassenso é apenas aparente. A esse respeito, esclarece Dirley da Cunha Júnior que “efetivo […] é o cargo, não o servidor que o titulariza. O servidor que titulariza um cargo efetivo pode ser, isso sim, estável” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 253).

Com efeito, em regra o servidor ocupante de cargo efetivo é o único que pode ser beneficiado com a prerrogativa da estabilidade, conforme bem aponta o art. 41 da Constituição. Mas é possível que um aspecto exista independentemente do outro: há servidor ocupante de cargo efetivo que não é estável, como ocorre com os servidores que se encontram no período de estágio probatório, e é possível também que haja servidores estáveis sem efetivação, e essa é a hipótese do art. 19 do ADCT.

A norma permissiva do art. 3º da Lei n. 6.185/74 acabou por “universalizar” a contratação trabalhista sem concurso no Estado brasileiro, restringindo as hipóteses de recrutamento de servidores concursados apenas aos cargos do Estado “sem correspondência no setor privado”. Embora a lei restringisse seus efeitos aos “servidores públicos civis da Administração Federal direta e autárquica” (art. 1º da Lei n. 6.185/74), essa prática era disseminada por muitos dos Estados e Municípios. Aproveitava-se a brecha do art. 97 § 1º da Constituição de 1967 (com a Emenda Constitucional n. 01, de 1969), segundo a qual “a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas e títulos,salvo os casos indicados em lei”: como a Constituição não impunha a obrigatoriedade de concurso público para outras ocupações estatais que não fossem cargo (e mesmo assim havia a possibilidade de a lei ressalvar cargos que não necessitariam de concurso para que fossem providos), essa modalidade precária de contratação foi utilizada maciçamente antes da Constituição de 1988 – e depois dela também, só que de forma inconstitucional.

Sendo pessoal estatal que, em sua maioria, compunha massa de manobra político-eleitoral, os critérios de admissão e dispensa eram livremente definidos pelo gestor de então, o que explica o fenômeno da “popularidade” da contratação celetista à época. Esses trabalhadores não tinham, pois, qualquer garantia de estabilização na função, situação que foi alterada pela atual Constituição, não sem que antes fosse reconhecida a existência de mais um trem da alegria, como afirma Gilberto Guerzoni Filho:

A utilização do regime celetista, celebrado como o moderno, em contraposição ao estatutário, arcaico, teve tal sucesso que, no momento da implantação do regime jurídico único pela Lei n. 8.112, de 1990, dos cerca de 700.000 servidores civis ativos da União, não mais de 150.000 ainda eram regidos pela Lei n. 1.711, de 1952. O que ocorreu, na prática, foi que grande parte dos servidores admitidos pelo regime celetista o foram sem concurso público e sem direito à estabilidade. De fato, praticamente a totalidade dos servidores admitidos pelas fundações, forma jurídica em que se constituíram grande parte das entidades criadas na época, entrou no serviço público, na melhor das hipóteses, por um processo seletivo simplificado, em que não esteve presente o pressuposto da impessoalidade, nem qualquer mecanismo institucional de avaliação de mérito. Esses servidores foram, muitas vezes, admitidos para prestar serviços na Administração direta. De fato, algumas fundações não passavam de verdadeiras intermediárias de mão-de-obra, aproveitando-se do fato de que não precisavam admitir por concurso e tinham ampla liberdade de fixação da remuneração de seus servidores. Ainda hoje, é possível observar, nos quadros de algumas fundações, um número desproporcional de servidores cedidos à Administração direta, alguns que, durante longo tempo, inclusive, somente tinham comparecido à sua entidade de origem, quando muito, para assinar o contrato de trabalho (GUERZONI FILHO, 2000, p. 28-29).

Nem todos os que foram admitidos sem concurso, porém, receberam a benesse da estabilidade. O art. 19 do ADCT somente reserva esse benefício àqueles trabalhadores que contavam com pelo menos cinco anos de serviço público contínuos à época da promulgação da Constituição. A eles foi concedido o direito à estabilidade do art. 41 da Constituição, com as mesmas garantias e restrições que regem a estabilidade do servidor concursado após 05 de outubro de 1988. Àqueles que não contavam com esses cinco anos contínuos, não haveria qualquer garantia de manutenção nos quadros funcionais estatais.

Autor:

Cláudio Dias Lima Filho

Procurador do Trabalho com lotação na PRT 5ª Região. Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor universi


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Cláudio Dias. Inquérito para a apuração de falta grave e a efetivação da dispensa do trabalhador estabilizado pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais TransitóriasRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16n. 300321 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20036. Acesso em: 1 nov. 2020.